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O que é uma experiência traumática?

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Anos atrás, após apresentar o EMDR a um cliente já em terapia, ele saiu a pesquisar na internet e, na sessão seguinte, me informou: “Eu acho que o EMDR não é a terapia certa para mim porque eu não tenho traumas”.

De fato, a definição de trauma como resultado da vivência de um evento devastador – trauma com “T” maiúsculo, como diria Francine Shapiro – é a noção mais corrente entre leigos e profissionais de saúde. E nem todo mundo que procura psicoterapia enfrentou eventos assim tão disruptivos em sua vida. A noção de trauma, contudo, é muito mais complexa e envolve desde eventos avassaladores até eventos mais “corriqueiros”, do dia a dia – traumas com “t” minúsculo, nas palavras de Shapiro, ou traumas “light”, como costuma dizer Esly Carvalho.

Tendo isso em mente, procurarei esclarecer, em linhas gerais, o que é trauma psicológico e o que ocorre quando somos traumatizados. Darei como exemplo uma experiência que pode ocorrer no dia a dia e que pode parecer inócua para quem olha de fora.

Trauma psicológico é uma resposta emocional a um evento percebido como intensamente doloroso ou ameaçador

Eu gostaria de começar citando o que ouvi, certa vez, em uma entrevista (não lembro agora o nome do entrevistado): “Nossa mente é como teflon para pensamentos positivos e como velcro para pensamentos negativos”. E isso é assim porque nosso cérebro foi construído e moldado primariamente, ao longo de milhares de anos, para identificar, de imediato, qualquer ameaça que possa pôr em risco nossa sobrevivência como indivíduos e como espécie.

Portanto, a primeira coisa a destacar é que a ansiedade e o medo são as reações fisiológicas e emocionais primordiais do nosso organismo diante de qualquer coisa ou situação percebida como uma ameaça, seja ela física ou psicológica – medo de ser ferido, medo de morrer, medo de não ser amado, medo de ser rejeitado, medo de ser abandonado, medo de perder o controle, medo de não ser bom o bastante e assim por diante. O trauma se instala quando não somos capazes de responder à ameaça percebida.

Observe que falei em “coisa ou situação percebida como uma ameaça”. Não é o evento em si que é traumatizante e sim nossa percepção do evento. Você pode me perguntar, por exemplo: um acidente de carro não é traumatizante? O acidente é um evento, um acontecimento. Em si, tem forte potencial para ser traumatizante; afinal, a vida ou a integridade física do indivíduo acidentado foi ameaçada. Mas não é necessariamente traumatizante para todas as pessoas. Há pessoas que, após um certo período de tempo, retornam ao estado de equilíbrio anterior ao acidente: elas superam a experiência e seguem com suas vidas sem sofrimento psicológico.

De maneira semelhante, eventos tidos como acontecimentos cotidianos comuns e inócuos podem ser percebidos como muito angustiantes por algumas pessoas, especialmente bebês e crianças, podendo, portanto, traumatizá-las. Por exemplo, o menininho Zezinho é educado para nunca questionar o pai e, um dia, ao fazê-lo, a mãe, gritando, diz: “Nunca, jamais, tente ser melhor do que seu pai”. Zezinho se torna adulto e não consegue ter sucesso na vida. Toda vez que chega perto de ter sucesso (uma promoção no trabalho, por exemplo), ele age, inconscientemente, de uma maneira que sabota seus esforços – afinal, ele não pode nunca, jamais, ser melhor do que o pai.

A percepção de um evento como intensamente angustiante ou ameaçador não é uma decisão consciente (deliberada, cognitiva, cortical, mais especificamente córtex pré-frontal). A detecção de ameaças é uma operação fundamentalmente subcortical (amígdala, tálamo, hipotálamo), informada por sistemas de memória implícita, isto é, inconscientes. O córtex pré-frontal, que é nosso interpretador verbal, até tenta entender o que está acontecendo, mas não consegue comandar o espetáculo.

A experiência traumática fica bloqueada no sistema nervoso com seus concomitantes emocionais, físicos (sensações corporais e viscerais) e mentais (imagens, pensamentos e crenças). O conteúdo bloqueado pode combinar realidade e fantasia.

A experiência traumática fica bloqueada porque, na ocasião em que você a vivenciou, você não tinha os recursos internos ou o suporte externo para lidar com a situação. A experiência lhe pareceu tão perturbadora, ou tão intensa, ou tão horrível, ou tão ameaçadora, que não pôde ser processada, metabolizada integrada ao seu senso de si mesmo no mundo. Em outras palavras, ela foi armazenada em seu cérebro de forma “crua” (não-processada) e isolada (desconectada de outras redes neurais). Nessas condições, ela fica como que congelada no tempo: toda vez que for ativada no presente, você reagirá como se estivesse revivendo a experiência original e tivesse a idade que tinha quando tudo aconteceu. E nenhum aprendizado adaptativo (apropriado, útil, funcional) será extraído da experiência original e da experiência no presente porque a experiência original está isolada de outras redes neurais. Dizendo de outro modo, você não aprende com a experiência. Se, devido a uma experiência traumática/perturbadora, você desenvolveu a crença “ninguém gosta de mim”, você vai continuar achando que ninguém gosta de você, mesmo que, vez após vez no presente, você tenha encontrado, em seus relacionamentos, pessoas que demonstraram carinho, apreço e consideração genuínos por você. Se você tem medo de agulhas, vai continuar com medo de agulhas, mesmo que, vez após vez no presente, nenhuma agulha tenha, de fato, lhe causado algum mal.

Vejamos um exemplo (fictício e simplificado). Maria tem 3 anos e levou umas palmadas da mãe porque quebrou seu vaso favorito. Ela não tem recursos internos suficientes para lidar com essa situação: ela é pequenininha, não sabe cuidar de si mesma sozinha, é extremamente dependente do amor materno, não é capaz de compreender a reação desproporcional da mãe (a mamãe ficou zangada e frustrada, mas isso não diz nada sobre quem eu sou). A mãe está separada do marido e, portanto, Maria não tem uma figura de apoio para defendê-la ou para colocá-la no colo, abraçá-la, consolá-la e explicar-lhe a situação de modo a amortecer o impacto da experiência. Essa experiência foi muito angustiante para Maria. A memória das palmadas (que pode até ser posteriormente esquecida), o olhar zangado da mãe e outros estímulos sensoriais (imagem), o medo e desamparo (emoções), a dor física e as sensações somáticas (sensações corporais), as crenças “eu não sou amada” ou “eu não faço nada certo” ou “não sou boa o bastante”, tudo isso fica armazenado no cérebro de Maria de forma isolada e não processada.

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Maria cresce e, ao longo de seu crescimento, sente ansiedade, medo, tristeza, dores de estômago e aperto no peito em determinadas situações. Maria não entende por que se sente assim. Apesar disso, ela segue com sua vida, consegue concluir a faculdade e arranja um emprego. Um certo dia, seu chefe lhe dá uma bronca porque ela não realizou determinada tarefa do modo como ele queria. Maria começa a se sentir muito mal, sai às pressas da sala do chefe e tem um ataque de pânico. Os ataques de pânico persistem ao longo dos meses seguintes e ela acaba pedindo demissão.

Maria não sabe, mas essas situações do presente, que chamamos de disparadores ou gatilhos, lembram, de algum modo, a experiência das palmadas aos 3 anos de idade. Ela reage a essas situações no presente não como a adulta que é agora, mas como a criança desamparada e amedrontada de 3 anos de idade.

Da perspectiva da terapia EMDR, enquanto essa experiência traumática não for reprocessada – metabolizada, digerida, conectada a redes neurais funcionais e adaptativas –, a habilidade de Maria de viver plenamente no presente e aprender com novas experiências ficará inibida. Ela, possivelmente, continuará a ter ataques de pânico, que, se não tratados, podem vir a piorar com o tempo, à medida em que as experiências dolorosas do presente vão se somando, reforçando assim suas crenças negativas sobre si mesma, os outros e o mundo.

Veja também: Trauma de Choque x Experiências Adversas de Vida

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2 comentários em “O que é uma experiência traumática?”

  1. Que maravilha quando a gente consegue compreender que nas situações atuais nossas reações tem haver com as experiências vividas na infância. Pretendo me aprofundar na temática.

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